17.4.06

vendaval


haveria paredes pintadas. papel florido, grudado em uma delas. talvez na do quarto. jardim de mentira na cabeceira da cama. cheiro de mato durante o sono. haveria janelas abertas. cortinas desenhadas em bordado azul claro. tecido fino filtrando o outono a invadir a sala. mesa colocada. haveria toalhas esticadas à espera dos pratos. louça branca. talheres lado a lado. xícaras. haveria jarras de porcelana. lustres. o reflexo das lâmpadas na bebida que transborda os copos. meus pés brincando os dedos entre os pêlos do tapete. capas sobre os sofás. quadros. natureza-morta, pregada no canto. taças intactas. cristais trancados. garrafas de vinho, envelhecendo mais um dia, no porão. caixas, fechadas por laços, guardando segredos em cima do armário. haveria fotos. sorrisos nos porta-retratos. molduras douradas. relógio na sala de jantar. ponteiros de bronze contando os minutos. o tempo a me matar, aos poucos, todos os dias, sem que eu percebesse. haveria música. partitura aberta no piano de cauda. sonata atravessando a casa. saindo pela janela. contaminando a estação de folhas secas. haveria água morna me esperando na banheira. espuma feita. sais. disco girando na vitrola. livros empilhados. estátuas. haveria tanta coisa, se não fosse você. tanto. se eu tivesse trancado as portas e impedido sua entrada. evitado sua passagem, pela minha casa, como um vento forte. vendaval. tornado, quebrando a louça. os móveis. arrancando os quadros. tempestade derrubando as taças. quebrando os vidros da janela. levando as cortinas bordadas de azul. claro. haveria tanta coisa, no lugar do caos. tanto, no lugar da vida destruída. se não fosse você, eu sei, teria sobrado muito mais de mim.