23.11.05

Por dentro


você não pode ver, mas debaixo desta casca, meu miolo escurece. não pode ver, mas, por trás deste verde, firme, brilhante, as coisas são de outra cor. estão em outro estado. eu apodreço. é o negro, ainda pequeno, crescendo próximo ao caroço, que explica o forçar do riso, quando não vejo graça. o beijo, quando prefiro o cuspe. a vontade de estar do outro lado da rua, na calçada oposta e de cabeça baixa, quando me surpreendo com o encontro. é a mancha escura, crescendo a cada dia, perto das sementes, contaminando a polpa branca e suculenta, que explica as juras de pra sempre, quando sei que o prazo está vencido. que as coisas terminaram. são os pequenos bichos, ainda microscópicos, se multiplicando famintos e silenciosos, que explicam o concordar, quando gostaria de quebrar a sala, derrubar os quadros, os potes, os vasos. que explicam o silêncio, quando gostaria de mostrar a língua, o dedo, gritar. é essa mancha escura, minúscula, escondida no meu miolo, que, só por ser pequena, ainda me faz suportar esse ambiente. a repetição do trabalho. a burrice. a lerdeza. seu lado medíocre sobrepondo o restante. enquanto tudo ainda é pequeno, consigo manter esta casca verde, firme, brilhante. enquanto a mancha não se espalha por completo, câncer pela polpa virgem, ainda consigo o sorriso no lugar do palavrão. o silêncio no lugar do grito. o beijo no lugar do cuspe. o sim no lugar do não. por baixo desta casca, apodreço a cada minuto. aos poucos. você pode não ver, mas eu aviso: estou mudando a cada dia. por dentro, sou outro.

21.11.05

Tchecov

"quanto mais alegre é a minha vida, mais sombrios são os textos que escrevo."

[Sin trama y sin final: 99 consejos para escritores]

10.11.05

Não


olhando o quarto, entre os cabelos caídos sobre o rosto, ela procura os comprimidos. pelas gavetas. nos armários. descalça, pés pretos, ela agora desobedece. contraria a infância higienizada e protegida. a meninice desinfetada. de chãos limpos. pisos brilhantes. cheiro de pinho. a vida de regras. de pode-não-pode. de coisas proibidas. a vida de nãos. não solte as tranças. não fale com estranhos. fique longe das tomadas. não deixe comida no prato. não suje o vestido. não fale palavrão. não caia do balanço. não ouça música alta. leia apenas os clássicos. não bata no seu irmão. só coma coisas verdes. não trepe sem casamento. não use drogas. não responda seus pais. respeite seus professores. não beba gelado. não saia sem blusa. não tome o sol do meio-dia. faça o dever de casa. não grite com sua mãe. não coma porcarias. cumprimente seus tios. não ponha a mão na boca. não aceite carona. esqueça que há vida de madrugada. não mostre a língua. não deixe a camisinha. não fale de boca cheia. não durma até tarde. não aponte. não chore. não tome remédios sem receita. não mais que um comprimido. não mais que dois. três. quatro. não mais que dez. não vomite sobre o tapete. não morra. idiota, não morra.