15.10.05

Culpa


a culpa é minha. só minha. eu que te enxergo como mar, quando não passa de uma gota, quase evaporada, caída sobre a calçada. a culpa é toda minha. que te ouço como sonata, quando não passa apenas de uma nota, sozinha, tocada sem querer na limpeza do piano. eu que te engulo como banquete, quando você não sustenta mais do que uma migalha. que te guardo como tesouro, escondida e trancada, quando você não vale nada mais do que uma moeda. centavo esquecido no fundo da bolsa. eu que te corôo como rainha, quando deveria te dar esmola. te sustentar com meus restos. eu que te vejo gigante, quando poderia te esmagar, em segundos, sob meu sapato. eu que sempre disse que me trouxe mudanças como um furacão, quando tudo não passou de um sopro. a culpa é minha. só minha. eu que teimo em achar que é única, quando o que mais me faz tropeçar por aí são coisas idênticas a você.

7.10.05

Outono


enquanto você me desejava uma coisa, eu já sentia outra. eu salivava um amargo, que se espalhava pela boca, enquanto você falava, parada em frente à porta. depois daquela tarde, outono de folhas secas caídas pela calçada, o gosto ruim nunca mais saiu da minha boca. meus cafés nunca mais se adoçaram. minha comida se tornou indigesta. desde aquele dia, poucas garfadas. não bebo mais água por causa do amargo misturado à sua insipidez. depois daquela tarde - outono, eu me lembro, pelas folhas secas que via pela janela espalhadas pela calçada - fui enganado por maçãs que me seduziram pelo seu vermelho. por morangos, pêras. por mangas suculentas, que na primeira mordida ganharam o gosto áspero da minha boca. se transformaram em pedaços cuspidos no chão da sala. naquela tarde, enquanto você me desejava uma coisa, eu já sentia outra. o frio subia pelas minhas costas. cubo de gelo desenhando minha coluna. desde aquele dia, a casa ficou fria. inteira. todos os cômodos. os pêlos dos braços nunca mais se deitaram. os cobertores nunca mais me esquentaram. a cama vazia, toda noite, me congela mais um pouco. desde aquela tarde. eu vejo vultos. ouço passos. escuto vozes. enxergo folhas secas, pela calçada, mesmo quando não é outono. as mudanças começaram antes mesmo da porta ser fechada. enquanto você falava. ainda enquanto me desejava uma coisa e eu sentia outra. começaram quando você me dizia que eu ia ficar bem. que eu merecia coisas melhores. eu acreditei. por alguns minutos. mas aquele gosto amargo invadiu a minha boca e.

4.10.05

desculpas


pra que eu mude de opinião, você pode fazer promessa. colocar uma cruz nas costas e ir pela beira da estrada. debaixo do sol. acenda velas, reze o terço. amarre fitas no braço, guarde um santo na carteira. suba os degraus de joelho. pra que eu mude de opinião, você pode fazer simpatia. escrever meu nome numa folha, derrubar um pouco de mel. roube uma cueca de minha gaveta. enterre minha foto no seu quintal. pra que eu mude de idéia, você pode usar a força. compre uma faca, um canivete, um revólver. arrume uma espingarda. arrombe minha porta com um dos seus pés. invada minha casa. me faça refém. transforme meu quarto em um cativeiro. peça como resgaste o que pretende de mim. me torture, aos poucos, pra que eu mude de idéia. me deixe sem ar com a cabeça no tanque. me amarre no pau-de-arara. dê choques pelo meu corpo molhado. ameace rasgar meus livros. riscar meus discos. queimar minhas roupas. ameace acabar com meu resto de família. quebrar meus móveis. pichar minhas paredes com palavrões em vermelho. meus muros. pra que que mude de opinião, você terá trabalho. tente. seja convincente. não me contento mais apenas com desculpas. do meu lado você não fica mais.