24.9.05

autoria


você pode até bater esse pé no chão, como fazia quando era criança contrariada. quando não ganhava seu doce, seu brinquedo, sua mesada. como quando abria seu pacote de presente e encontrava o que não tinha pedido. você pode fazer manha, bico, beiço. como quando o passeio era outro, a comida era outra, a música era outra e não a escolhida por você. como quando a sobremesa colorida só vinha depois do prato todo verde. chore. esperneie. berre. você pode agarrar a barra da minha calça. puxar minha camiseta. você pode chorar rolando pelo tapete. pode me xingar, ameaçar. você pode reagir, me bater, tentar me matar. pode quebrar as coisas da casa. há dezenas de copos nos armários. pratos de porcelana. xícaras de cerâmica. você pode encher este chão de cacos. pode bater as portas na minha cara. emburrar. cruzar os braços. você pode fazer qualquer coisa. mas essa caneta eu não devolvo. você não muda mais a minha vida. quem escreve essa história aqui sou eu.

20.9.05

porquês


"porque choveu porque o despertador tocou porque você não deixou o café da manhã preparado porque não era véspera de natal porque mandar flores não é do meu feitio porque as chaves não estavam no porta-luvas porque você disse que telefonaria porque tive de subir as escadas vinte vezes numa noite só porque tive nojo porque cortaram a água e o gás porque ninguém me avisou que janeiro chegaria porque voltei a usar cueca porque discuti com o zelador porque todos os alarmes do quarteirão dispararam ao mesmo tempo porque você jurou que telefonaria porque o entregador de jornal não veio hoje porque as rosas jasmins crisântemos porque estupraram a morena do 23 porque duzentos gatos subiram a rua arranhando tudo porque o trânsito estava o cu da cobra porque o amor não tem sexo porque mais vale um pássaro porque quem não tem cão porque tive medo porque tulipas hortênsias amores-perfeitos porque você jurou - você jurou de pé junto"

[valério oliveira - mínimo eu]

17.9.05

pequena gota


deixei que fosse embora, achando que era pouco. pequena gota d'água. deixei que fosse embora, sem saber que eu secaria com o tempo. que viraria deserto.

14.9.05

sem querer


se os talheres que você usava não esbarrassem no prato, sem querer, fazendo aquele ruído que sempre me arrepiava os pêlos dos braços, eu me esqueceria que existia alguém por perto. se não fosse o barulho irritante dos seus garfo e faca encostando no prato de louça eu não me lembraria que havia alguém na outra cadeira comendo rápido. enchendo a boca como um animal faminto. engolindo suas garfadas, quase inteiras, sem mastigar. tentando abreviar, com sua rapidez estúpida, a duração dos nossos jantares. dos nossos encontros diários, há muito, transformados em silêncios absolutos. se os seus pés não encostassem nos meus, sem querer, debaixo das cobertas, eu me esqueceria que havia alguém ao meu lado. se eu não sentisse seu calcanhar gelado esbarrando na minha perna ou nos meus pés, no meio da madrugada, eu não me lembraria de sua presença. se eu não sentisse seu cheiro ao bater os travesseiros pela manhã, talvez pensasse que tivesse dormido sem ninguém por perto. talvez me esquecesse de sua existência. é só por isso que não choro. é só por isso que não me tranco em casa, com as janelas fechadas. eu já estava sozinha muito antes. antes da porta batendo. antes da chegada do seu elevador ao térreo. eu já estava sozinha antes de você embolar suas roupas em sacos de lixo, enfiar seus livros em uma caixa de papelão e levar seus discos em duas sacolas de supermercado. você já tinha me obrigado a esquecer da sua voz. do seu jeito. do seu nome. talvez tenha sido sem querer. é por isso que não choro. porque nada mudou. ver você, pela janela semi-aberta, indo embora sem olhar para trás, apenas oficializa a minha condição. agora estou sozinha para os outros. não apenas para mim.

13.9.05

Crime Passional


"você eu fui matando aos poucos. um dia depois do outro. bem devagar. deixei de perguntar. deixei de dizer. deixei de avisar. dobrei cobertores, empilhei discos, escondi travesseiros e fotografias. separei o que havia em dupla. livrei-me do que era único. usei as costas de bilhetes essenciais. varri todos os pêlos pra debaixo dos lençóis. abafei as minhas vontades com mãos postas em desespero. o telefone se esganando por um fio. fumei páginas e páginas da tua Bíblia. mudei horários. recolhi documentos. mandei recados. voltei aos ovos fritos e às notícias. comecei a passar reto onde fazia curva. fui matando você assim. devagarzinho mesmo. agora você está completamente assassinada."
[fernando bonassi]