23.8.05

avesso


você não deve ter visto, mas eu me retorcia na cama, tentando desvirar a alma, colocada no avesso sem querer. eu me esfregava pelo colchão cheio de espumas e molas despontadas, arranhando as minhas costas. deixando marcas vermelhas. você não deve ter ouvido, mas eu chorava. pedia num gemido pra que me lavassem por dentro. pra que jogassem baldes de água e sabão pelos meus cantos. todos. pelos lugares mais escondidos, como a ponta de um dedo. você não deve saber, mas eu me sentia sujo. como se tivesse desistido de caminhar depois da chuva e parado em uma esquina qualquer, com as mãos no bolso, encostado em um poste, recebendo as poças de lama dos carros passando perto da guia, de propósito. espirrando na minha roupa, encharcando os meus sapatos, sujando o meu rosto com o que escorreu da cidade imunda. com o que veio por cada um dos canos e tubulações. com a água que lavou os telhados, as marquises, as calçadas. você não deve ter sentido, mas eu tinha um amargo na boca. nem isso você percebeu? um gosto ruim de coisas passadas. de algo apodrecido. você não sentiu o meu cheiro. nem a minha testa quente. o suor da minha febre. você não leu os meus bilhetes com letras tremidas espalhados pela casa. meus pedidos de ajuda escritos com carvão pelas paredes. as letras de imã formando socorro, na porta da geladeira. você estava ao meu lado, mas nunca me viu. por isso não pode me exigir um sorriso agora. não pode pedir pra que eu levante. por isso não pode me chamar de forte. você não me conhece. por isso não pode me olhar com essa cara e dizer que não sabia que eu estava morrendo aos poucos. por dentro.